«O pianista Keith Jarrett (aliás do trio de Jarrett/ Jack DeJohnette/ Gary Peacock, também conhecido por "Standards") vem a Lisboa para um concerto carregado de emoção e expectativa. A razão é conhecida; Jarrett abandonou o palco do Coliseu, incomodado pelo fumo dos cigarros (na altura fumava-se em todo o lado) e pelo ruído da assistência que falava e barulhava indiferente à sua música. Só após os apelos do promotor para o bom comportamento do público e da sua persuasão, o músico acedeu – contrariado – a continuar o concerto. Muita gente recordará o episódio – o Coliseu estava cheio que nem um ovo – como uma atitude arrogante do pianista, mas à distância... Poucos recordarão a música. Mas hoje ninguém fala e muito menos fuma numa sala de concertos (bom, à excepção do Hot...).
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Mas se o regresso de Keith Jarrett transporta uma carga emocional que não é musical, ela não deverá desviar as atenções dos melómanos para a actuação de um dos maiores músicos de Jazz de todos os tempos; eu diria mesmo o maior pianista de Jazz da actualidade; pois que ele é efectivamente um músico de Jazz completo: um intérprete inventivo, um improvisador inspirado, um pianista brilhante, um verdadeiro génio.
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Não me vou alongar nos encómios, até porque ele é um dos músicos de Jazz mais populares junto do público português, outros dirão da arte e técnica de Jarrett com mais propriedade que eu e os jornais se encarregarão de, nos próximos dias, dissecar o músico e o artista sob todas as perspectivas.
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Apenas duas notas:
O Keith Jarrett que se apresentará no CCB não é de forma alguma o Jarrett a solo dos concertos de Colónia, La Scala ou Radiance, mas um dos lados do triângulo equilátero do originalmente denominado "Standards". O trio que iremos ver, composto por mais dois outros gigantes do Jazz, o baterista Jack DeJohnette e o contrabaixista Gary Peacock, constituem o mais importante representante vivo da fórmula "culta" do trio de piano-baixo-bateria.
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O seu universo privilegiado é pois o universo do Jazz clássico, dos standards que exploram como nunca ninguém antes fez. Dos standards, não somente recolhidos do American Song Book, mas também os standards do Jazz de Thelonious Monk a Charlie Parker, Dizzy, Duke, Sonny Rollins ou... Keith Jarrett. Apesar disso, nem por um momento se pense que a música do trio é comportada ou comercial. Ela é sofisticada e intensa, por vezes intimista e reflexiva, por vezes arrebatada, sempre inspirada. Que a "aura" mística que rodeia o pianista não impeça os amantes de a Grande Música de observar também a arte maior dos outros dois músicos do trio.
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Num episódio que já contei, há uns anos eu perguntei pela saúde de Keith Jarrett a Gary Peacock numa deslocação do baixista a Lisboa. Por essa altura, há talvez oito anos atrás, Jarrett estava com um grave problema de saúde neurológico-muscular e refugiou-se na sua casa de campo. Peacock foi bastante simpático e disse-me que tinha estado com o pianista e que ele estava bem. No decorrer da interessante conversa ele explicou-me que uma parte importante do problema de Jarrett advinha do cansaço extremo motivado pela entrega total que ele tinha em cada concerto: "É como se ele vivesse uma vida inteira em cada concerto. É como se ele fosse morrer no momento seguinte e tivesse de tocar tudo. Como se não houvesse mais nada. Como se não houvesse tempo". As frases pareceram-me na altura demasiado complexas ou filosóficas, e duras, para ser ditas pelo companheiro de Jarrett, mas creio que me ajudaram a compreender melhor a sua música.
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Observei (ou apenas entrevi) por diversas vezes noutros músicos esta conexão tão próxima entre o Jazz e a vida que Peacock me comunicou naquelas três ou quatro frases sorridentes, e aprendi a estar mais atento, a observar a simbiose entre os músicos e os instrumentos (os "gemidos" de Jarrett), a empatia que se estabelece entre cada músico; como se ouvem e como se "falam", a relação privilegiada dos músicos com o público (que os impede de tocar se o público não está a ouvir), e o significado da palavra Arte em Jazz. A vida, enfim.
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O que espero poder observar no próximo Domingo é um pouco desta Arte Maior, duas horas talvez, apenas, de emoção e grande grande Música.»
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(Leonel Santos in Agenda Jazz)
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